Os portugueses criam duas invenções por dia, mas nem sempre elas chegam às prateleiras das lojas. A falta de empreendedorismo continua a ser a pedra que trava a engrenagem
O vídeo que fez furor sobre "O Que os Finlandeses Devem Saber Acerca de Portugal" está cheio de referências às invenções atribuídas aos portugueses. Desde a vela latina à Via Verde, passando pelos cartões pré-pagos para telemóvel, ao famoso pastel de nata, até às recentes descobertas de novos fármacos ou à criação de equipamentos para utilização de energias renováveis, são muitas as criações (ou adaptações de outras existentes) que fazem de Portugal um dos países com maior número de registo de patentes.
O mais interessante é que o grosso dos pedidos de patente vem de inventores independentes (44%), em vez das universidades (25%), empresas (28%) ou institutos de investigação (35%), segundo números do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Continuamos a ser um país de engenhocas, capazes de criar objetos ou invenções peculiares, como uma almofada antirressono ou um método de esterilização de equipamento hospitalar cobiçado por Israel.
Até do lixo somos capazes de tirar boas ideias, como fez Mário Silva. Sendo um engenhocas desde criança, daqueles que desmontam tudo para montar algo diferente, cedo se habituou a olhar para as coisas e ver mais além. Foi o que aconteceu com o lixo, criando um processo inventivo próprio que partiu da seguinte premissa: "Como fazer com que as pessoas se apaixonem pelo lixo?". A resposta foi simples: "Trazendo valor para as pessoas. Se assim for, vão querer ficar com o lixo." Como se faz? "Criando resultados para o lixo que as pessoas adorem. Soluções de reciclagem doméstica atrativa."
A partir daqui, rapidamente chegou à ideia de reciclar óleo alimentar usado, transformando-o em velas. Contactou amigos, criou um grupo de trabalho, e assim nasceu a Candlemaker, uma máquina que faz isso mesmo: transforma óleo usado em velas aromáticas. Além da máquina, Mário, que tem formação em gestão e marketing, foi mais longe e criou também uma empresa, a Oon, para comercializar a sua invenção. Desde o registo de patente em 2007 até à comercialização em 2010 passou por um processo que começou com "100 euros para o pedido de registo e acabou num custo de 70 mil euros, em três anos". "Há uma complexidade de coisas a registar, desde processo a desenhos, nomes, etc. É um mundo", sublinha.
A Oon só foi possível através de empresas de capital de risco. "Não foi nada fácil pôr o projeto de pé, porque somos um país que se habituou a comprar tudo feito e não quer dar-se ao trabalho de colocar as nossas coisas lá fora, porque isso requer investimento e não temos a capacidade de ver primeiro do que os outros", critica. Este tom de Mário é compreensível, uma vez que a Oon está em risco de insolvência, porque os "acionistas não têm condições, face à atual crise, de dar seguimento ao projeto", que entraria agora na fase de internacionalização, o que implica, pelas contas de Mário, "um investimento de cinco milhões de euros".
Inventar e investir
Não chega ser inventor. Também é preciso ser empreendedor. A maior parte das vezes, o investimento é o calcanhar de Aquiles do inventor que não tem capacidade financeira. Por outro lado, algumas das invenções não vão avante porque a solução técnica pode já estar a ser explorada no mercado sob outra forma. O reconhecimento de que a ideia é boa não é fácil, mas José Maurício, responsável pelas marcas e patentes do INPI, considera que "deve ser o próprio inventor a definir uma estratégia de colocação do objeto no mercado".
Já a maioria dos inventores queixa-se da falta de apoio por parte do Estado e das empresas. Ao que José Maurício responde: "Não pensem que o Estado tem a obrigação de lhes abrir as portas para o sucesso da sua invenção. O Estado pode apoiar, mas o inventor tem de definir ele próprio uma estratégia de continuidade da sua invenção. Tem de estudar o mercado e a exploração comercial da sua invenção, o eventual licenciamento; estabelecer parcerias, garantir apoio financeiro através de empresas de capitais de risco, suportando-se numa análise de custo/benefício."
Este discurso é realista mas mal compreendido para quem a sua mais-valia é criar e já teve o trabalho e o mérito de fazê-lo. "Não se pode exigir do inventor uma diversidade de conhecimentos e que seja multifacetado para fazer tudo. O inventor, na maior parte das vezes, não é o melhor gestor", sublinha Pedro Carradinha, 'pai' do Heat-It, um equipamento para utilização em fogões de montanha que permite confecionar os alimentos sob praticamente todas as condições climatéricas.
O engenheiro, de 35 anos, que de início não tinha qualquer perspetiva comercial - a sua invenção nasceu da necessidade enquanto amante de alpinismo de ter algo que protegesse a chama do fogão em dias muito ventosos -, confessa que o processo por que passou, desde o momento em que criou o primeiro protótipo da sua ideia, em 1999, até à abertura da empresa e comercialização do produto (2009), foi difícil e longo.
"O primeiro registo de patente foi feito em 2005. Nessa altura já conhecia o Nuno Monge, com quem formei mais tarde a Ortik. Levámos mais de um ano a perceber como era o processo de registo de patente. Tivemos de redigir vários textos e fazer vários desenhos técnicos", explica. Em 2006, foram a uma feira na Alemanha para perceber se o produto tinha aceitação no mercado do montanhismo e alpinismo. O invento despertou interesse, de tal forma que "uns canadianos queriam comprar logo mil exemplares".
Assim que chegaram a Portugal tentaram arranjar um empresário da indústria têxtil que estivesse disposto a fabricar o artigo, mas as portas fecharam-se. "Alguns nem sequer responderam", garante Carradinha. Pedro e Nuno resolveram enviar o caderno de encargos para a China e três semanas depois receberam o seu produto já feito, "a custo zero" e com uma nota onde perguntavam se era aquilo que eles queriam. "Apesar de só termos feito uma produção, os chineses compraram tecido para duas produções, mas ainda só pagámos a primeira. Eles arriscaram. Cá, os empresários são pouco recetivos a novos projetos. Não estão para correr o risco. Não se informam, não apostam", concluem.
Apoios escassos. Quanto ao investimento, os donos da Ortik recordam que primeiro tentaram "a utopia de um financiamento bancário". Depois falaram com amigos e conseguiram um sócio investidor, mas foi através da entrada de três business angels -empresários que investem capital a título particular - que o negócio avançou. Mais tarde, uma sociedade de capital de risco de referência do Ministério da Economia decidiu também investir na empresa, que nesta altura, além do Heat-It, já tem uma série de outros produtos neste nicho de mercado, como tendas e colchões.
Fim da linha
Na verdade, os apoios são poucos, nomeadamente em tempos de crise. A Linha de Apoio à Internacionalização de Patentes, que financiava o processo de proteção da invenção a nível nacional e internacional, "acabou em dezembro último", diz José Maurício.
Ainda assim, o responsável pelas marcas e patentes reconhece que a ajuda aos inventores na fase de arranjar quem financie a sua patente "poderia ser atribuída ao INPI, porque tem uma boa rede de contactos". Ao mesmo tempo, salienta o papel dos centros tecnológicos que pode ser determinante nesse tipo de apoio. "Acho que dão esse apoio se forem consultados. Não o são por desconhecimento do próprio inventor. Há apoios dispersos, e os inventores têm de procurá-los", alerta.
Foi o que fizeram Manuel Londreira, Fortunato da Costa e Hélder Gonçalves. Os três conseguiram dar continuidade às suas invenções - pelo menos a algumas, no caso de Manuel Londreira -, mas acusam o país de falta de apoio à proteção das invenções e de, em alguns casos, terem sido vítimas de apropriação das suas ideias por parte de terceiros. Tanto Fortunato da Costa como Hélder Gonçalves tiveram as portas fechadas cá dentro, mas escancaradas lá fora.
O método de esterilização de equipamento hospitalar inovador que Hélder Gonçalves, de Boticas, inventou não conseguiu "derrubar os lóbis instalados no meio hospitalar português", nem mesmo depois de ter colocado máquinas em alguns hospitais, "sem custos, para que as experimentassem". Ainda que a máquina tenha custos mais baixos do que as concorrentes, segundo Hélder Gonçalves, a verdade é que continua "a perder os concursos de forma aberrante". Cá só conseguiu vender duas - uma para o Hospital de Mirandela e outra para a Maternidade de Coimbra -, mas a ideia suscitou o interesse de uma multinacional israelita, a Tuttnauer, que comprou o processo. O inventor garantiu, no entanto, que os componentes primários da máquina continuam a ser fabricados em Portugal.
Segundo José Maurício, "existem 100 a 150 inventores individuais, estando a maior parte deles ligados a empresas ou universidades. Verdadeiramente sozinhos serão só uns 20 inventores". Por ano, têm chegado ao INPI cerca de 18 a 20 mil pedidos de registos de marcas, mas na realidade os números são pouco expressivos. "Em termos absolutos, isto é, de novos pedidos de patentes, o significado não é tão forte. Comparativamente com outros países da Europa, o ideal era se recebêssemos de 2500 a 3000 pedidos por ano", adverte José Maurício, que acrescenta: "Em 2011 estão previstos entre 800 a 900 pedidos de patentes."
Resta saber se o que interessa a Portugal é o resultado da atividade dos inventores individuais ou do que se desenvolve nas empresas e universidades? Para o responsável do INPI, os resultados destas últimas têm maior importância, apesar de todos os anos haver inventores portugueses premiados no Salão Internacional de Genebra. Só que "não basta ter o prémio e a medalha. Um dos critérios para a patenteabilidade se verificar é o requisito da aplicação industrial. Tem de ser passível de ser explorado a nível industrial". E é aqui que tudo se complica, nomeadamente para os inventores independentes.
O diretor de marcas e patentes do INPI chama ainda a atenção para o facto de haver muitos inventores que não respondem às notificações do INPI no processo de registo, perdendo assim direito ao mesmo, enquanto outros deixam caducar as anuidades.
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