sábado, 30 de abril de 2011

Maestro Luís Cipriano “Em Portugal por vezes premeia-se a mediania ou até a mediocridade”

O Projecto Zéthoven é um projecto cultural que tem como objectivo o crescer da criança como ser humano através de uma parceria com as artes. Assim a partir dos três anos de idade as crianças mantêm contacto regular com a música, com a dança, com o teatro, enfim, com uma série de actividades que lhes permite o desenvolvimento motor e intelectual.

VE-Segundo afirmou, o Projecto Zethoven foi sem duvida o maior projecto da Associação Cultural da Beira Interior. Como surgiu esta ideia?
LC-Surgiu pela necessidade de se modificar a abordagem musical que se fazia às crianças. No projecto Zéthoven inicia-se sempre pela prática que para além de mais motivador para as crianças aproveita as capacidades inatas que estas idades possuem. Por outro lado, é sempre mais fácil explicar a teoria musical quando na prática e de forma natural essas actividades já foram executadas pelas mesmas. O próprio nome junta Zé, o rapaz do dia a dia, com o final do nome do grande compositor que foi Beethoven. Foi também uma estratégia como se de um casamento do plebeu com o aristocrata, isto na perspectiva da sabedoria musical.

VE-Este projecto tem como principal objectivo aproximar a crianças da música clássica e desta forma potenciar o desenvolvimento das crianças. Acha que a musica pode promover o desenvolvimento de um espírito empreendedor?
LC-A música, como há muito se sabe, desenvolve capacidades intelectuais de forma continuada que traz proveitos para o futuro na abordagem de qualquer situação. Quando o estudo musical promove a abertura de espírito, fá-lo não só para raciocínios musicais mas para todo o tipo de raciocínio que na verdade serão úteis para qualquer indivíduo seja ela qual for a sua profissão. A música estimula o ir mais além e esta postura é fundamental para a sociedade moderna.

VE-Em que medida a ACBI e projectos como o Zethoven funcionam como motores do desenvolvimento do Interior do Pais?
O ACBI têm desde sempre promovido a descentralização cultural no interior, seja através de concertos seja através do ensinamento musical às crianças. Em muitas aldeias fomos nós a fazer o primeiro concerto que há memória. São concertos comentados para que as pessoas entendam o que ouvem e vêm pois ninguém nasce ensinado. Posso dizer que temos sempre os concertos repletos de pessoas que no final perguntam quando é próximo. Falo de gente que vêm directamente das suas quintas e hortas para o concerto, mas a sensibilidade não se mede pela actividade quotidiana de cada um mas sim pela sua disponibilidade para a evolução. No que respeita às crianças do projecto Zéthoven, mais de 4 000 já trabalharam com uma Orquestra Sinfónica. Quantos o fizeram em Lisboa ou no Porto? O Interior é por vezes onde um homem ou uma mulher quiserem.

VE-Muito se fala da importância do trabalho em equipa numa orquestra. Qual a importância desta aprendizagem no âmbito do projecto Zethoven?
LC-No Projecto Zéthoven inicia-se sempre a aprendizagem musical com classes de conjunto, sejam os Grupos de Percussão seja o Coro. O trabalho em equipa é fundamental para se obterem resultados a nível individual. Repare, que na maioria das cursos superiores, nunca existe uma cadeira que promova o trabalho em equipa, sendo antes uma selva em que cada um pensa em si. No entanto quando chegam ao mercado de trabalho são obrigados a trabalhar uns com os outros, o que não deixa de ser uma contradição, e que por vezes provoca maus resultados ou períodos longos de adaptação. Uma criança que na escola responda um disparate a uma pergunta do professor provoca de imediato a risada geral e até do próprio. Num ensaio, uma criança que se engane e comprometa o trabalho do grupo, fica envergonhada e tenta rapidamente fazer bem. È a diferença à qual aqueles que idealizam o sistema educativo português nunca estiveram atentos.

VE-Pela sua dimensão internacional, este projecto dá também a estas crianças a oportunidade de entrar em contacto com novas culturas e desafios. Pode-se dizer que este projecto além da vertente cultural prepara também os alunos para os desafios de uma economia global?
LC-A globalização é uma realidade e qualquer projecto realista terá de assim o entender. Dou-lhe o exemplo do Coro Misto da Beira Interior, também um projecto da ACBI e que é o destino das crianças com melhores resultados. É o Coro em Portugal com mais medalhas conquistadas em Concursos internacionais. Tivemos o concurso Robert Schumann na Alemanha. Devido a dificuldades económicas tivemos de ir de autocarro e durante a viagem eu próprio, com um fogão de campismo, fiz para todas seis refeições de salsicha o equivalente a três dias de viagem mantendo o ritual no regresso. Resultado? Uma medalha de Prata. Isto é o que fica para a história, ou seja os resultados. A palavra impossível aqui dentro não entra. Mesmo com armas diferentes temos de competir e eu não nasci para participar nas festas dos outros… prefiram que eles venham à minha.

VE-Quantas Crianças já passaram pelo Zethoven e que avaliação fazem desta experiência?
LC-Num cálculo por aproximação, hoje, mais de 40 000 crianças já estiveram em contacto com o projecto, seja de forma continuada, seja de forma pontual, não havendo nenhum distrito do País que não tenha usufruído do projecto. Como disse atrás, um projecto cultural que se mantêm neste país durante onze anos tem de no mínimo ser sólido. Sei de antemão que nem todas as crianças vão ser músicos mas fico satisfeito por poderem ser bons ouvintes e essenciamente seres humanos melhor formados. Anseio mesmo que alguns possam ser políticos pois aí teria a garantiam que decerto seriam mais cultos do que a maioria daqueles que há anos fingem possuir esse atributo. Vivemos num país que para se ser Vereador da Cultura é preciso muita coisa menos ser-se culto. Estas crianças terão decerto uma palavra a dizer numa possibilidade de mudança de atitude.

VE-Este projecto destaca-se ainda pela rede criada entre diferentes entidades desde autarquias, escolas, governos civis e a própria ACBI. Pode-se falar também de um exemplo de empreendedorismo em rede?
LC-Sim, mas a rede demorou a solidificar-se pois antes foi necessário mudar mentalidades. Repare que no interior, cada Presidente de Câmara é uma espécie de “reizinho” feudal que quer bem demarcadas as fronteiras das suas terras. Se um tem uma piscina com ondas, o do lado constrói também uma e se possível com ondas maiores mesmo que as duas possam distanciar-se por meia dúzia de quilómetros. No Projecto Zéthoven as crianças interagem entre si e são escolhidas para os concertos em função da sua produtividade e nunca da sua origem. Por isso foi preciso explicar e fazer entender que o objectivo é o produto final e que este está acima de qualquer regionalismo ou perspectiva eleitoralista. Todos juntos ainda somos poucos e remar na mesma direcção traz sempre mais possibilidades de chegarmos ao destino. Só trabalhamos com autarquias que percebam este modo de actuar até porque no Projecto Zéthoven não há milagres, há trabalho e produto final.

VE-Actualmente muito se fala de potenciar o empreendedorismo como meio de ultrapassar esta crise económica que vivemos actualmente. Na sua opinião que medidas poderiam ser tomadas para se desenvolver esta capacidade desde a infância?
LC-A criança por natureza é empreendedora mas tem o azar de ter uma sociedade habituada ao emprego e não ao trabalho, e uma sociedade que tem mais imaginação para se desculpar do insucesso do que propriamente fomentar o sucesso. No Projecto Zéthoven por exemplo, existem metas a cumprir, mas a idade da criança nunca é uma forma de travão, antes pelo contrário, fomentamos a sua evolução e a sua capacidade de iniciativa. Se por exemplo uma criança de 12 anos, por capacidades inatas e por atitude assinalável, consegue realizar o mesmo trabalho de uma de 15 anos, é de imediato colocada no grupo desta última faixa etária, aproveitando e desenvolvendo tudo aquilo que ela poderá dar e de novo trazer. Em Portugal por vezes premeie-se o medianismo ou até a mediocridade. Nós premiamos a competência e o ir mais além.

VE-É verdade que a participação numa Orquestra potencia o rigor, a exigência e a competição entre os seus membros, garantindo no entanto um bom resultado enquanto equipa?
LC-Numa Orquestra basta um dos músicos ter um mau dia em cima do palco para de imediato passar a ser uma ma dia para toda a Orquestra, pois o resultado que apresenta, apesar de poder ser afectado por um só individuo, reside no somatório das capacidades de todos. A competição neste caso é extremamente salutar e resulta nos bons resultados de todos, pois quanto mais elevado foi o nível do individual mais pode potenciar os resultados do colectivo. Numa Orquestra como numa empresa, o bom desempenho individual resulta num excelente colectivo que trás benefícios a esse mesmo colectivo mas que de imediato se reflecte também no individual. Quando se contrata uma Orquestra beneficia-se salarialmente os seus músicos. Se não é contratada também o individual não usufrui dessa desejável situação económica. Ninguém contrata uma Orquestra aos bocados mas sim pelo seu todo.

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